Nascente do Rio São Francisco é ameaçada pela ação humana

Publicado por Tv Minas em 16/01/2019 às 21h54

A Serra da Canastra, que abriga a nascente do Velho Chico, é palco da disputa de terras entre o governo e antigos moradores.

 

No prólogo do livro Velho Chico, uma Viagem Pictórica, José Theodomiro de Araújo, maior pesquisador São Francisco, escreveu letras tristes sobre o futuro do rio. “Está enfraquecido o Velho Chico, e agoniza, jurado de morte que foi pela ganância e inconsciência dos seus próprios filhos”, escreveu Araújo, morto em 2003. “E quando ele morrer, no lugar onde hoje é a cachoeira Casca d’Anta, nós, que o amamos, faremos fixar no paredão da serra o epitáfio: 'Por aqui passou um rio que foi destruído por um povo que usou a inteligência para praticar a burrice'.”

 

Com uma bacia hidrográfica cuja área soma 639 mil quilômetros quadrados e percorre 507 municípios de sete unidades da Federação, visto de cima o Velho Chico mais parece uma veia aberta que se estende por 2.863 quilômetros do território brasileiro. A nascente fica na Serra da Canastra (MG), região que é considerada um verdadeiro berçário de rios: são tantos que os cientistas definem o local como uma gigantesca caixa d’água. Mas nenhum deles conta com tamanha devoção como o São Francisco, o rio da integração nacional que, ironicamente, tem testemunhado uma série de conflitos em suas disputadas (e, muitas vezes, desfiguradas) margens.

 

A cachoeira Casca d’Anta, citada por Theodomiro de Araújo, tem 186 metros de altitude e se forma da nascente histórica do São Francisco, a cerca de um quilômetro da primeira mancha de garimpo da região. Hoje, o local não passa de uma cicatriz no meio da mata, mas até 1996 era o ponto de partida para a extração de diamante no Alto São Francisco. Pela estrada, as propriedades se espalham. A maioria pertence a moradores tradicionais, que vivem da produção de queijo, base da economia local.

 

Placas indicam as direções das pousadas, como a Limeira, uma das mais antigas da região. É lá que mora Whainne de Castro, 60 anos. Encostado ao lado da porta da cozinha, ele lembra do tempo em que a região era quase uma terra de ninguém: “Isso tudo era garimpo. Na época em que meu avô comprou a fazenda, você podia caçar, tirar cascalho, desmatar.”

 

O neto de garimpeiro recorda que, em décadas passadas, o movimento era tão intenso que havia pelo menos 5 mil pessoas cadastradas garimpando no local. Outros tantos extraíam as pedras na ilegalidade. “Enquanto teve cascalho aflorado na Serra, só se pensou em diamante”, afirma o dono da pousada. “Com a proibição do garimpo, a partir da década de 1970, as coisas começaram a mudar.”

 

Castro é um dos precursores do ecoturismo na Canastra. “Meu avô conseguiu umas pedras no garimpo e comprou essas terras. O turismo era o caminho, mas ninguém dava a mínima para o meio ambiente”, diz. As belezas naturais e os esportes radicais são hoje as principais atrações da região.

 

Quem também continuou a morar por lá após o fim do garimpo foi Élzio Leonel da Costa, de 73 anos. Ele lembra que as pedras preciosas eram escoadas para os mercados de luxo de Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. “O comércio era clandestino, 99% dos diamantes saíam daqui de forma ilegal”, diz o ex-garimpeiro. Mas se a proibição de extração do diamante aliviou consideravelmente o impacto ambiental na região, ações humanas e a disputa de terras ameaçam as nascentes que formam o Rio São Francisco.

 

 

Élzio da Costa, 73 anos, trabalhou no garimpo da região.

 

 

Questão de conservação

 

As principais preocupações na região do Alto São Francisco estão relacionadas ao aumento da ocupação urbana e da atividade industrial, com a siderurgia, transformação química, produção têxtil e de papel. Na Serra da Canastra, a prática da pecuária extensiva e os incêndios criminosos também agravam a situação. “Muitos fazendeiros não sabem manejar o seu gado e poucos cercaram as nascentes de suas propriedades”, ressalta Whainne de Castro.

 

Para o biólogo Rafael Melo, idealizador do Projeto Peixes de Água Doce, do Instituto de Estudos Pró-Cidadania, o desmatamento à margem dos rios e a construção de barragens são causas graves de degradação. “O desmatamento leva ao acúmulo de detritos no leito do rio, diminuindo a riqueza e a diversidade de espécies animais e vegetais”, diz. “Já as barragens alteram a dinâmica das águas, impedindo a migração e a reprodução de peixes.” O Rio São Francisco possui nove hidrelétricas ao longo de seu percurso, como a de Três Marias, em Minas Gerais, e a de Sobradinho, na Bahia.

 

Remanescente da área original do Cerrado, parte da flora da Canastra não foi alterada pela ação humana graças à existência do Parque Nacional. “O propósito da unidade de conservação é preservar esse oásis natural, que serve de habitat para mil espécies de plantas e centenas de espécies de animais”, afirma Fernando Tizianel, chefe do Parque Nacional da Serra da Canastra. A área de proteção tem um ecossistema formado por 354 espécies de aves e 38 de mamíferos — muitos em risco de extinção.

 

Criado em 1972, durante a ditadura militar, o Parque Nacional tinha uma área original de 200 mil hectares. O processo de desapropriação das terras, no entanto, foi realizado de maneira truculenta. Os moradores foram retirados à força de suas casas pelos militares e muitos habitantes não receberam o valor devido pelas terras. Depois de disputas judiciais que se estenderam ao longo de décadas, hoje apenas 71 mil hectares contam com situação fundiária regularizada.

 

 

Conflito pela terra

 

Na área não regularizada, que corresponde a quase 130 mil hectares, vivem famílias de fazendeiros e pequenos agricultores que moram no local há gerações. “Caso sejam reconhecidos como parte da população tradicional, os moradores permanecerão, por direito, na terra”, explica Tizianel. “Do contrário, em algum momento terão de sair.”

 

Eis um grande ponto de interrogação para toda a comunidade que habita a Canastra e depende de seus recursos naturais. O produtor de queijo Nivaldo Pereira Rosa, 64 anos, tem sua propriedade situada no Vão dos Cândidos, na área não regularizada: “Minha vida é este pedaço de chão. Eu me criei na fazenda, casei e eduquei os meus filhos nestas terras”, diz. “Se me tirarem daqui, não vou aguentar de tristeza.”

 

Tizianel reitera que há uma falta de clareza dos proprietários acerca da situação fundiária atual. “O processo, hoje, se desenrola de forma legal, ou seja, todos serão devidamente indenizados, o pagamento será realizado de acordo com os valores de mercado”, diz o chefe do Parque Nacional da Serra da Canastra. “Ninguém será expulso das terras, tampouco desapropriado sem que se cumpram as etapas previstas na lei.”

 

O conflito também impossibilita um desfecho para a preservação dos mananciais da região. Miguel Farinasso, analista da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), afirma que uma solução em potencial para o problema seria a capacitação dos moradores para realizar projetos de revitalização dos afluentes da Bacia do São Francisco, como o combate ao desmatamento e a recuperação de nascentes. “É preciso recuperar as nascentes e os afluentes para que o volume do São Francisco seja aumentado.”

 

 

O Veado-Campeiro, ameaçando de extinção, é espécie típica das nascentes do São Francisco.

 

 

O Chico e o pato

 

O Cânion São Leão, local de encontro das águas do Rio São Francisco com o Rio Samburá, é considerado o abrigo da nascente geográfica do Velho Chico. Em sua margem direita avistam-se os barracões da comunidade onde vivem 50 pescadores. Wilton Darque Pereira, um dos pescadores mais antigos de São Leão, comenta que, se não fosse pelo barzinho que administra ali, passaria por apertos financeiros. “Moro há 25 anos aqui e consegui formar um filho na universidade federal. Se fosse para tratar do menino agora... Desse rio já não se tira nem metade do necessário.”

 

Se antes Pereira pescava cerca de 15 quilos de peixe por dia, capturando espécies das mais variadas, como curimba, mandi, piau, surubim e dourado, hoje ele não consegue puxar nem quatro quilos com as redes. “O maior problema é o desmatamento das beiradas. Tiram muito mato para poder plantar”, explica. “Eles colocam veneno lá em cima e o trem chega aqui embaixo, mata tudo quanto é peixe.”

 

Programas ambientais auxiliam na avaliação da qualidade da água, como o desenvolvido pelo Instituto Terra Brasilis. Criado há 15 anos, o Projeto Pato-Mergulhão faz do Rio São Francisco um laboratório de análises. “O pato vive em toda a área do parque, mas, como reside nas beiradas do rio, qualquer impacto gera a perda de seu habitat”, diz Wellington Viana, que trabalha como biólogo de campo.

 

O pato-mergulhão está gravemente ameaçado de extinção: de acordo com a União Mundial para a Natureza (UICN), restam apenas 250 exemplares da espécie ao redor do mundo. A Canastra concentra a maior quantidade de habitantes, com cerca de 140 animais. A ave é considerada pelos cientistas como um “termômetro”, já que é uma espécie extremamente exigente quanto à limpeza da água.

 

Por conta disso, um dos eixos do projeto visa à conscientização dos produtores rurais, que, aos poucos, aprendem a melhorar sua relação com o ambiente. Entre as informações trabalhadas estão a preservação das nascentes e matas ciliares que se localizam dentro das propriedades. Com a ação, as nascentes se mantêm intactas, o que preserva o habitat do pato. “O nosso trabalho começa a surtir efeito. Há produtores que já entenderam quão importante é cercar as nascentes”, afirma Viana. “Muitos fazendeiros, inclusive, trabalham com o reflorestamento de áreas próximas às nascentes e beiradas de rio.”

 

 

O Pato-Mergulhão corre o risco de ser extinto.

 

 

Onde nasce o Velho Chico

 

O Parque da Serra da Canastra fica no sudoeste de Minas Gerais:

 

 

Compartilhe essa matéria:

As Mais Lidas da Semana